Thursday, March 27, 2008

ninguêm ama tão desalmadamente como o actor...

Edward Gordon Craig (1872-1966) at the Arena Goldoni, with a model stage, 1912. (Craig-Lees Collection, Harvard Theatre Collection)

Desde que a UNESCO instituiu o Dia Mundial do Teatro, o propósito é enaltecer uma arte que mobiliza milhões de pessoas - autores, encenadores, actores, coreógrafos, técnicos da luz, do som, figurinistas, muitos outros. Que todos têm importância mostra-o a síntese feita em 1905 pelo actor, encenador e cenógrafo inglês, Gordon Craig, uma das figuras decisivas para a história do teatro ocidental do século XX: «A arte do teatro não é a representação dos actores, nem a peça escrita pelo autor, nem a encenação nem a dança. É, sim, constituída pelos diversos elementos que compõem o espectáculo; o gesto, que é a alma da representação; as palavras, que são o corpo da peça; as linhas e as cores, que são a própria existência do cenário; o ritmo, que é a essência da dança». Porque o mundo se altera e a tecnologia com ele, o Teatro não pode deixar de chamar ao seu território novas abordagens que lhe aperfeiçoe a prestação, permitindo-lhe a aproximação a um público cada vez mais informado. Isto mesmo está consagrado na mensagem deste ano do Dia Mundial do Teatro, escrita pelo canadiano Robert Lepage: "Existem várias hipóteses sobre as origens do teatro, mas aquela que me interpela mais tem a forma de uma fábula: Uma noite, na alvorada dos tempos, um grupo de homens juntou-se numa pedreira para se aquecer em volta de uma fogueira e para contar histórias. De repente, um deles teve a ideia de se levantar e usar a sua sombra para ilustrar o seu conto. Usando a luz das chamas ele fez aparecer nas paredes da pedreira, personagens maiores que o natural. Deslumbrados, os outros reconheceram por sua vez o forte e o débil, o opressor e o oprimido, o deus e o mortal. Actualmente, a luz dos projectores substituiu a original fogueira ao ar livre, e a maquinaria de cena, as paredes da pedreira. E com todo o respeito por certos puristas, esta fábula lembra-nos que a tecnologia está presente desde os primórdios do teatro e que não deve ser entendida como uma ameaça, mas sim como um elemento unificador. A sobrevivência da arte teatral depende da sua capacidade de se reinventar abraçando novos instrumentos e novas linguagens. Senão, como poderá o teatro continuar a ser testemunha das grandes questões da sua época e promover a compreensão entre povos sem ter, em si mesmo, um espírito de abertura? Como poderá ele orgulhar-se de nos oferecer soluções para os problemas da intolerância, da exclusão e do racismo se, na sua própria prática, resistiu a toda a fusão e integração? Para representar o mundo em toda a sua complexidade, o artista deve propor novas formas e ideias, e confiar na inteligência do espectador, que é capaz de distinguir a silhueta da humanidade neste perpétuo jogo de luz e sombra. É verdade que a brincar demasiado com o fogo, o homem corre o risco de se queimar, mas ganha igualmente a possibilidade de deslumbrar e iluminar."

E porque sem o teatro eu era, sem margem de dúvida, mais infeliz, Viva o teatro

Poema do actor
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus,
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.

Herberto Hélder

22 comments:

João Roque said...

Bela homenagem ao teatro, essa Arte maior em que o actor está "ali" a dizer-te alguma coisa, a "ti"! Não está na caixinha mágica da televisão ou na magia de uma tela, está ali, fisicamente...
Por isso prefiro sempre o teatro a outras formas de representar; ir ao teatro inebria-me, mesmo que por vezes não seja tão bom como esperava.
Já vi grandes peças de teatro, mas se me é permitido distinguir duas, quero referir uma peça que vi no Império (sim, é verdade) e que era representada por uma Companhia de Teatro Brasileiro que incluía Paulo Autran, da autoria do grande escritor joão Cabral de Mello Neto e que se chamava "Vida e Morte Severina" se não estou em erro; e outra, com a grande Eunice, na Caqsa de Garrett, que se chamava "Caminho para Meca" de uma escritora branca sul africana que ganhou o Nobel - não recordo o nome (Nadine Gordimer ???) e que foi um espanto, com encenação do João Lourenço.
Vivam os actores portugueses (não os modelos transformados em actores...) e sobretudo VIVA O TEATRO!!!
Abraço.

Leonor said...

Uma justissima homenagem merecidamente muito bem escrita. Transpor para o palco aquilo que vivemos ou ambicionamos não é seguramente para qualquer um, mas pode ajudar a transformar um pouco essa realidade.
É essa capacidade de nos revermos e de nos fazer pensar no que somos e fazemos, fim afinal do que para mim devem ser as artes, que revejo no teatro, e é sempre com prazer que o frequento e descubro novas linguagens ou pontos de vistas ou simplesmente uma comédia que nos faça rir do nosso dia a dia.
Pena é que o preço dos bilhetes afaste ainda algumas pessoas...

BlueVelvet said...

Que bela e bem escrita homenagem ao teatro, que é a 8ª Arte já que o cinema é a 7ª. Sempre me interroguei quais são as outras...Adiante
Fantástico o poema.Tinha que ser do Herberto Helder, claro.
Obrigada por mais este momento de beleza.
beijinhos e veludinhos

Special K said...

E que viva o teatro, sempre!
Um abraço

Anonymous said...

"El teatro es poesía que se sale del libro para hacerse humana."
Federico García Lorca

Já sabia que aqui seria, com toda a certeza,feita a devida homenagem ao teatro!

Atrevo-me a adaptar o título do post e dizer:
"ninguém ama o teatro tão desalmadamente como o Luís Galego"

pois de facto muitos blogs falarão hoje sobre o dia do teatro mas em nenhum se sente o prazer que este tem.

Abraço
Narcis

Frioleiras said...

mesmo recém regressada... e com falta de tp
é sp bom ler-te !

Maria P. said...

Excelente!


Beijinho*

Anonymous said...

Luís
Em tempo de recordações, vem-me à memória uma peça que vi, em fins dos anos 60, e que marcou o meu gosto por esta arte. Chamava-de "Amanhã digo-te por música..." e era interpretada pelo grupo 4 (João Lourenço, Irene Cruz, Rui Mendes e Morais e Castro) que pertencia aos chamados Grupos Independentes.
Não me recordo bem do texto, mas recordo-me de ter aplaudido, de pé, durante imenso tempo.
Estava eu no auge da minha rebeldia (18 anos), menina da Faculdade de Letras habituada a correr à frente da polícia e de partida para Paris onde fui apanhada pelo Maio de 68.
Belíssimos tempos!
Só me falta a disponibilidade e a agilidade dessa época. O gosto pelo teatro, esse continua cá, de pedra e cal!
Beijos
Gena

Caxuxita said...

O teatro é sempre muito bom de ser recordado, vivido e sentido...

Beijinho

avelaneiraflorida said...

Amigo Luís,
acabei de deixar no meu cantinho uma recordação que me é especialmente querida: o teatro de Dom Roberto...
Ao chegar e ler este poema e as palavras que o antecedem...regressei a um outro momento marcante: quando vi a peça "Insulto ao Público" levada à cena pelo Grupo 4 ( se não estou em erro) e de que ainda hoje tenho uma impressiva memória!!!
Sim, VIVA O TEATRO!!!!

o Reverso said...

o actor

o sofrimento

o amor

isabel said...

o actor em estado puro!

homenagem linda, Luís :)

SP said...

Muito bela esta tua homenagem!
Um abraço...

adouro-te said...

Não são eles... os bons actores... que devoram as personagens?
Um abraço, Luís!
Quanto eu aprendo contigo... Ou será que me ensino... por aqui?

Anonymous said...

E eu que também gosto muito de teatro vou daqui mais rica...
viva o teatro e obrigada pela informação e poesia.
Bom fim de semana

isabel mendes ferreira said...

verdade verdade verdade verdade!!!!!



.



obrigada!


por um post belo de doer.
e ainda por cima com o H-H. a corroborar as suas palavras.


.


beijo.

Marcelo said...

Sou um profundo admirador da capacidade e do talento que só os atores possuem em nos fazer acreditar que, de fato, são o que não são.

E que viva o teatro.

Abraços.

TUSB said...

está excelente, parabens, assim como uma optima escolha do poema a acompanhar!

Pena said...

Estimado e Brilhante Amigo:
Um Post admirável, amigo.
O Teatro "sente-se" naqueles que o concebem e lhe dão vida.
Anos atrás tinha amigos ligados ao Teatro que o viviam e "sentiam" conm paixão. Muita paixão.
É dignificante existir um dia reservado para esta "Arte" que encanta e deslumbra.
Com seu Post talentoso fiquei a saber muito que ignorava. A fogueira"! É um exemplo da magia que encerra as maravilhas cénicas criativas dos Artistas.
Vou poucas vezes ao Teatro. Tenho que me rever.
Excelente, amigo. Gostei muito.
Parabéns pela atitude que considero muito significativa.

Abraço Forte de estima, consideração e respeito

pena

OBRIGADO sentido pela visita. Adorei!

Isabel Victor said...

Bela homenagem, Luís


infinita.mente obrigada


iv*

Anonymous said...

Vim só desejar uma boa semana.

Manuel Damas said...

Um belo "post" a justificar, em pleno, passar por aqui.
O que é sempre um prazer...
Pena tenho que nem sempre me seja possível demorar-me.
Um abraço