(Vincent Van Gogh —"Old Woman of Arles" — 1888, Van Gogh Museum, Amsterdam)
Perpétua Vaquinhas, 79 anos.
Apresenta-se na Boa Hora pela enésima vez. A polícia e os tribunais não lhe metem medo.
Acusação: furto, em flagrante delito.
Desta vez foram várias peças de roupa de diversas lojas no centro da cidade, vindo a ser detectada por comerciantes e interceptada pela PSP, que recorreu a imagens captadas pelo sistema de vídeo-vigilância de um dos estabelecimentos para identificar a meliante. Como as devolveu não vai apanhar mais que uns meses.
Está no inverno da sua existência. Enviuvou há trinta. Um marido repleto de cicatrizes do álcool, uma dor d’ alma.
Dez filhos, dos quais sete ainda vivos.
Nunca frequentou uma escola.
Ofício: vendedora de castanhas. Um infortúnio na família. Já o pai e a madrasta, amortalhados em miséria, faziam a mesma coisa. Sete filhos compõem a melodia de uma família destruída que não chegou a reconstruir-se. “Educados” de tal modo que nem querem voltar a vê-la, nem recordar uma diáspora de fadiga e sofrimento, aquilo a que o escritor Richard Ford chama “as vidas sem aplauso de todos nós”. “Entendo-os”, aceita sem pruridos.
Apesar de sentenciada por múltiplos roubos, passando a fino quase todas as lojas de Lisboa, furtos reincidentes, nunca abandonou a cidade, nem por um dia tão-pouco. Noutro lugar, estaria desgraçada. Lamentavelmente, não há castanhas o ano inteiro porque aos 79 anos, Perpétua Vaquinhas ainda aguenta horas em pé, ao frio, a vender, ainda que chova a cântaros. É assim há mais de 60 anos. Diz que este pode ser o último Outono/Inverno, de fuligem colada ao rosto. Alguns clientes chamam-lhe "velhota", meigamente. Brincam com ela – "Tenho muitas pessoas amigas, fregueses que gostam de mim e me compram castanhas?" – e ela esquece as dores nos ossos e na carne. Os anos não lhe roubaram o humor, mas o fumo do assador enegreceu-lhe a face, como uma figura do Picasso azul. O corpo começa a ressentir-se da dureza do trabalho. A trombose e o derrame cerebral sofridos também pesam. Para trás, ficam décadas de trabalho e muitos dissabores, como os carrinhos extraviados. Então arranja-se a gatunar, como se fosse uma espécie de avença. “Não posso deixar de o fazer, é impossível”, diz. E fá-lo. Depois vai ao tribunal, como outras fazem tricô. Intimam-na para contar a realidade dos factos. Os depoimentos na barra são claros, ela admite, sem recato nem dissimulação que rouba. Pela enésima vez, aguarda que tudo aquilo se desenrole, sem uma palavra em sua defesa, sem diplomacia, mas também sem insultos, sem reconhecimento pelos desafortunados causídicos que a advogam oficiosamente. Toda a gente sabe que a fragilidade económica gera dependência e mais vale roubar do que confundir-se com lama humana.
- Deixem-me em paz, já conheço a ladainha – diz casmurra, recusando a oferta de ajuda, enjeitando qualquer compromisso com a ordem estabelecida, adaptando-se o melhor que pode à sua justiça como à sua vida, em nada sentido beliscada a constituição cívica e moral. A sociedade lambuza-se na ingenuidade de que quase toda a gente se comporta segundo a ortodoxia de costumes, tolice. A nódoa cai em todos os panos.
- Como ainda não anseio esticar o pernil, vejo-me forçada a roubar.
A idade foi-lhe transformando o afecto, aguçando a franqueza cruel, quase sádica, com que enuncia os seus juízos. É verdade que como apontava Cícero, quem vive muito tempo vê muitas coisas de que não gosta, mas a sua intolerância é ainda total. Acha que os anos lhe permitem dizer tudo o que lhe apetece. É ainda mais dogmática nas suas crenças, mais colérica quando contradita. Não tem tempo a perder e apesar de analfabeta não faz jejum à inteligência. Tem 79 anos e dança num trapézio sem rede. Não, não é uma sonhadora, é uma mulher prática. É preciso andar depressa e actuar. Como dizia Montaigne: “ ninguém é tão velho que não espere poder viver mais um ano”, e por isso a escatologia da sua velhice tem sido sempre muito categórica. Mover-se, como uma gata vadia que reconhece à légua os seus telhados e o sistema forense também, por ambos se desviando e se reencontrando. Está longe de sentir um desejo absurdo de sofrer, distante de se encarar como um caso terminal. O canto do cisne não se lhe assenta por enquanto. A ela se aplica como uma luva a expressão tão bela de Éluard: “le dur désir de durer”. E, uns dias aqui, outros por ali, lá vai mareando contra ventos desfavoráveis. Alimenta-se. E vive.
- O trabalho, já me acostumei a ele. No Estabelecimento Prisional de Tires ou noutro lado qualquer, é a mesma coisa. Trabalhar nas oficinas da prisão ou ir vender castanhas para a Rua Augusta mal a manhã desperta.
Como não tem intenção de morrer, irá continuar, aguentando-se à beira do abismo sem cair. É impossível, inexequível fazer outra coisa. E vai conseguir comer. E, pela enésima vez, “os Senhores da Autoridade” não vão saber onde paira. “Tenho muitas pessoas amigas, fregueses que gostam de mim, não vou agora dar o nome deles à polícia. É uma questão de honra”.
Luís Galego
Veio-me à memória um livro delicioso que descobri há tempos da Marguerite Duras, Outside, (notas à margem), que reúne a quase totalidade das crónicas e artigos publicados pela autora no France-Observateur e na edição norte-americana da revista Vogue, entre 1950 e 1980, numa visão lúcida e sensível sobre o curso dos dias da história. Num dos contos habita uma velha senhora, Lucie Blin, que se confronta com uma realidade de adversidade social. Resolvi convocar uma espécie de Lucie a terras lusas e travesti-la de vendedora de castanhas e ladra, em acumulação de funções, e construir uma pequena história, num similar estado de alma.
Apresenta-se na Boa Hora pela enésima vez. A polícia e os tribunais não lhe metem medo.
Acusação: furto, em flagrante delito.
Desta vez foram várias peças de roupa de diversas lojas no centro da cidade, vindo a ser detectada por comerciantes e interceptada pela PSP, que recorreu a imagens captadas pelo sistema de vídeo-vigilância de um dos estabelecimentos para identificar a meliante. Como as devolveu não vai apanhar mais que uns meses.
Está no inverno da sua existência. Enviuvou há trinta. Um marido repleto de cicatrizes do álcool, uma dor d’ alma.
Dez filhos, dos quais sete ainda vivos.
Nunca frequentou uma escola.
Ofício: vendedora de castanhas. Um infortúnio na família. Já o pai e a madrasta, amortalhados em miséria, faziam a mesma coisa. Sete filhos compõem a melodia de uma família destruída que não chegou a reconstruir-se. “Educados” de tal modo que nem querem voltar a vê-la, nem recordar uma diáspora de fadiga e sofrimento, aquilo a que o escritor Richard Ford chama “as vidas sem aplauso de todos nós”. “Entendo-os”, aceita sem pruridos.
Apesar de sentenciada por múltiplos roubos, passando a fino quase todas as lojas de Lisboa, furtos reincidentes, nunca abandonou a cidade, nem por um dia tão-pouco. Noutro lugar, estaria desgraçada. Lamentavelmente, não há castanhas o ano inteiro porque aos 79 anos, Perpétua Vaquinhas ainda aguenta horas em pé, ao frio, a vender, ainda que chova a cântaros. É assim há mais de 60 anos. Diz que este pode ser o último Outono/Inverno, de fuligem colada ao rosto. Alguns clientes chamam-lhe "velhota", meigamente. Brincam com ela – "Tenho muitas pessoas amigas, fregueses que gostam de mim e me compram castanhas?" – e ela esquece as dores nos ossos e na carne. Os anos não lhe roubaram o humor, mas o fumo do assador enegreceu-lhe a face, como uma figura do Picasso azul. O corpo começa a ressentir-se da dureza do trabalho. A trombose e o derrame cerebral sofridos também pesam. Para trás, ficam décadas de trabalho e muitos dissabores, como os carrinhos extraviados. Então arranja-se a gatunar, como se fosse uma espécie de avença. “Não posso deixar de o fazer, é impossível”, diz. E fá-lo. Depois vai ao tribunal, como outras fazem tricô. Intimam-na para contar a realidade dos factos. Os depoimentos na barra são claros, ela admite, sem recato nem dissimulação que rouba. Pela enésima vez, aguarda que tudo aquilo se desenrole, sem uma palavra em sua defesa, sem diplomacia, mas também sem insultos, sem reconhecimento pelos desafortunados causídicos que a advogam oficiosamente. Toda a gente sabe que a fragilidade económica gera dependência e mais vale roubar do que confundir-se com lama humana.
- Deixem-me em paz, já conheço a ladainha – diz casmurra, recusando a oferta de ajuda, enjeitando qualquer compromisso com a ordem estabelecida, adaptando-se o melhor que pode à sua justiça como à sua vida, em nada sentido beliscada a constituição cívica e moral. A sociedade lambuza-se na ingenuidade de que quase toda a gente se comporta segundo a ortodoxia de costumes, tolice. A nódoa cai em todos os panos.
- Como ainda não anseio esticar o pernil, vejo-me forçada a roubar.
A idade foi-lhe transformando o afecto, aguçando a franqueza cruel, quase sádica, com que enuncia os seus juízos. É verdade que como apontava Cícero, quem vive muito tempo vê muitas coisas de que não gosta, mas a sua intolerância é ainda total. Acha que os anos lhe permitem dizer tudo o que lhe apetece. É ainda mais dogmática nas suas crenças, mais colérica quando contradita. Não tem tempo a perder e apesar de analfabeta não faz jejum à inteligência. Tem 79 anos e dança num trapézio sem rede. Não, não é uma sonhadora, é uma mulher prática. É preciso andar depressa e actuar. Como dizia Montaigne: “ ninguém é tão velho que não espere poder viver mais um ano”, e por isso a escatologia da sua velhice tem sido sempre muito categórica. Mover-se, como uma gata vadia que reconhece à légua os seus telhados e o sistema forense também, por ambos se desviando e se reencontrando. Está longe de sentir um desejo absurdo de sofrer, distante de se encarar como um caso terminal. O canto do cisne não se lhe assenta por enquanto. A ela se aplica como uma luva a expressão tão bela de Éluard: “le dur désir de durer”. E, uns dias aqui, outros por ali, lá vai mareando contra ventos desfavoráveis. Alimenta-se. E vive.
- O trabalho, já me acostumei a ele. No Estabelecimento Prisional de Tires ou noutro lado qualquer, é a mesma coisa. Trabalhar nas oficinas da prisão ou ir vender castanhas para a Rua Augusta mal a manhã desperta.
Como não tem intenção de morrer, irá continuar, aguentando-se à beira do abismo sem cair. É impossível, inexequível fazer outra coisa. E vai conseguir comer. E, pela enésima vez, “os Senhores da Autoridade” não vão saber onde paira. “Tenho muitas pessoas amigas, fregueses que gostam de mim, não vou agora dar o nome deles à polícia. É uma questão de honra”.
Luís Galego
Veio-me à memória um livro delicioso que descobri há tempos da Marguerite Duras, Outside, (notas à margem), que reúne a quase totalidade das crónicas e artigos publicados pela autora no France-Observateur e na edição norte-americana da revista Vogue, entre 1950 e 1980, numa visão lúcida e sensível sobre o curso dos dias da história. Num dos contos habita uma velha senhora, Lucie Blin, que se confronta com uma realidade de adversidade social. Resolvi convocar uma espécie de Lucie a terras lusas e travesti-la de vendedora de castanhas e ladra, em acumulação de funções, e construir uma pequena história, num similar estado de alma.
22 comments:
Conto notável, com uma personagem muito coerente e por quem se tem, sem reservas, simpatia; seja ladra ou não seja, é uma Mulher com M grande...
Abraço.
Gostei!... A capacidade de se colocar na pele do outro, de "adivinhar" como a vida transforma o nosso mundo psicológico.
Sem dúvidas posso dizer que é na prosa onde mais surpreende.
Uma sugestão, pensar em escrever um livro de pequenas histórias (?)...
Parabéns
Olá Luis!
Nova foto de perfil. Bonita! :)
Este teu texto ficcionado e bebido por inspiração ao Outside da Marguerite Duras, diria que é tão realista quanto verdadeiro. Para além de belissimamente bem escrito, retrata numa "generalização particularizante" o quotidiano de tanto ser humano com quem tropeçamos mesmo sem saber os pormenores. Que podiam ser uns quaisquer.
Abraço especial
Daniel
Bom... o que se está a passar aqui é coisa séria.
Todos esperamos que estes contos continuem, que não terminem.
Mas não sendo insaciáveis, somos obrigados a exigir mais.
Sentimo-nos compelidos a exigir a publicação dos contos.
Tudo isto só faz sentido reunido na unidade orgânica; Livro.
GRITOMUDO
Um excelente texto meu amigo
Recriado mas um belo inédito
A senhora das castanhas
num país
onde os ladrões
os verdadeiros atentados
à sociedade andam à solta
Abraço de saudade
Mal consegui acabar de te ler... emocionaste-me.
A vida é madrasta para tanta gente... e fico sem palavras.
Deixo-te um abraço enorme, Luís
Belíssimo Conto.
Por vezes,dada a actual situação, acreditamos estar a assistir á descrição de uma realidade dos nossos dias, de tal forma a perfeição da escrita nos conduz.
Bravo Luís Galego, continua a ser um grande Maestro a fazer das palavras uma bela melodia.
Um abraço nocturno
surpreendes-me sempre...
obrigada!
boa semana
Uma mistura de pequena criminalidade com esforço de sobrevivência, infortúnio com resignação, injustiça com moralidade e tudo temperado com a dose adequada de ternura, isto só poderia dar uma personagem tão rica e imediatamente amada pelo leitor. Uma crónica ou pequeno conto que não deixa de ser uma crítica à sociedade e também um hino ao ser humano. Lindo
Caro Luís,
um conto emocionante com uma perspectiva crítica sobre a situaçao actual...
" Como não tem intenção de morrer, irá continuar, aguentando-se à beira do abismo sem cair. "
Esta passagem é maravilhosa!
Abraços:
L.C.
Nova foto no perfil...rumo decidido, movimento...é o que acontece nos seus textos...Uma realidade crua, uma história com movimento e traço definido.
Nem sei já há quanto tempo não passava por "aqui"... Fiquei agradavelmente surpreendido! A minúcia da observação e o carácter analítico dos textos alargaram-se
a "outros mundos" e tudo sempre de uma forma escorreita e clara...
Foi bom ter cá vindo!!!
Muito bom e realista este tu conto. E quantas destas pessoas nos passam "transparentes" diariamente...
Boa semana!
ps - Espero que tenhas gostado do filme
Caro Luís,
pode ser um conto, sim.
mas terá sido (continua a ser?) uma imensa realidade...
Enquanto lia, vinham-me à memória algumas pessoas da minha velha Lisboa...
Alguns pedaços de vidas...
Podiam ter este rosto, esta postura. Outros ainda estão por surgir em "ficção"...
De qualquer modo, um excelente texto!
Fantasiada, inventada, caricaturada, esta crónica é a realidade espelhada de um país que não acautela a cruel realidade dos mais velhos, em especial aqueles que, como esta personagem, não conseguem romper um ciclo de pobreza. Nascer e morrer pobre. Lutar até ao fim. Não se vergar à inércia, contudo.
Eu que trabalho com a 3ª idade bem vejo, bem sinto, o quão é difícil sê-lo com dignidade. “este país não é para velhos”… não é?? Pois…
Bem-hajas, Luís, pela tua lucidez.
Um beijo da tua "sister" que tanto orgulho têm em sê-lo.
Mel
É uma força da Natureza!
Texto incrivelmente bem escrito, parabéns!
Beijinhos
E tanto que a
*___bonecadetrapos___* gostou de o ler. Fantástico, caro Luís. Duvida que as bonecas leiam? Pois acredite que esta lêm. E muito ...
Saudações. Cordialmente,
*__bonecadetrapos__*
Espero que não fiques muito chocado se te disser que não condeno a vendedora de castanhas.
Aliás, se fosse o caso, ainda a defendia.
Excelente.
Beijinhos e bom fim-de-semana
Adorei, como sempre. Fizeste-me lembrar a "velhota das castanhas" que paira todos os invernos por baixo da minha casa. Também ela,marcada pelo tempo e pelo frio, vende as quentes e boas ano após ano. Que faça frio , chuva ou vento, é espreitar pela janela e lá está a velhota a esfumaçar a rua com esse cheiro que esperamos sentir todos os anos.
Abraço
Por vezes as pessoas mais simples dão grandes lições à humanidade! Gostei de vir aqui! :)
muito bom, luís!
comovente a força que as tuas palavras deram a esta mulher.
parabéns
abraço
Excelente retrato duma senhora que continua a lutar pela vida, não da melhor maneira...
Belo quadro do Van Gogh mostrando ... la vieillesse dans toute sa beauté !
Beijinhos verdinhos
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