Sunday, April 12, 2009

só agora dou pelo sabor das lágrimas...

Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta / no interior da terra. Somos / um reflexo dos mortos, o mundo / não é real. Para poder com isto e não morrer de espanto / – as palavras, palavras.
Herberto Hélder, “Húmus” (fragm,), in Poesia Toda

De noite fui tão violentamente atingido pelo desejo febril de regressar a uma certa paisagem íntima que me levantei da cama, sem acordar Teresa que se deitara cedo; recolhi-me no escritório e pus-me a escavar no tal livro. Lembrei-me que tinha sido com enorme perturbação que o lera pela primeira vez, muitos anos atrás, numa atmosfera outonal e crepuscular. O meu desejo de ver a mesma luz jorrar da suprema ficção de Raul Brandão e bater-me na cara era tão intenso que, por um breve instante, se reanimou o meu espírito. Era um batimento cardíaco, uma inquietação, um estremecimento, uma vertigem, que talvez me pudesse desvendar o segredo do meu ser, essa ansiedade que poderia levar-me ao coração daquela prosa misteriosa, uma obra que se confunde com um dilacerante grito de angústia e desespero. Um dos mais belos textos de toda a literatura portuguesa, Húmus é uma sequência de fragmentos datados à maneira de um diário, exprimindo tudo isso a que poderia chamar a dor humana. Tal como na semana em que compulsivamente lera o livro pela primeira vez, dei por mim a vaguear pelos meus difíceis dezassete anos, pelos meus sonhos e decepções, abismos, contradições e arrebatamentos ilusórios, idade de todas as paixões e medos, entusiasmos e angustias, como se se envelhecesse antes de tempo, mas simultaneamente com o encanto de um olhar luminoso sobre o mundo. No silêncio da noite arrepiei-me todo, como se tivesse finalmente encontrado uma pista evidente sobre a minha forma de estar na vida depois de tantos anos de andanças; um livro escrito para e sobre mim. Mas não é o único, existem muitos outros que me ajudam a construir o romance que ando a escrever. Já de manhã alinhei cuidadosamente a obra na estante e ressacado saí definitivamente de casa com o sentimento de que livros há que são autênticos sismógrafos emocionais que registam as nossas mais ínfimas variações de estados de alma e que se entranham perpetuamente nas nossas peles, ultrapassando os limites demasiado estreitos do espaço e do tempo.
Luís Galego

24 comments:

Daniel C.da Silva said...

"livros há que são autênticos sismógrafos emocionais"

Bem verdade. E gostei de ler que andas a escrever um romance. Sempre pugnei por isso desde que te comecei a ler atentamente.

Abraço

Daniel

Luís Galego said...

Caro Daniel

trata-se de ficção; não estou a escrever nenhum romance...

Um abraço
LG

AnaLee said...

Também fiquei esperançada. Afinal é ficção...
Certo é que, se o tal romance aparecer, tem à partida fiéis leitores.
Belo texto, uma vez mais.

lusibero said...

VOU falar-lhe, Luís,mais logo, no meu blog; depois, passe o texto para o seu blog, como fez da última vez, pois não quero correr o risco de ver o texto fugir-me. Entretanto, lá tenho que ir ,primeiro, a casa das tias da aldeia...É Domingo de páscoa!
Um beijo amigo

GS said...

... Há livros que nos 'sacodem' por inteiro, outros que nos 'acolhem' afectuosamente, outros ainda que despertam em nós reminiscências nostálgicas de coisas vividas, e ainda outros que nos dão um incrível vontade de 'escrever'...

Certo, certo, é que também eu dormi mal esta noite! Impactos de lua nova?!

Sensibilizada pelo seu olhar em 'fragmentos'!

Continuação de bom domingo de Páscoa!

david santos said...

Brilhante!
Uma boa e feliz Páscoa!

David Santos

Maria said...

E quantas vezes nesses livros encontramos páginas tão especiais em que nos quedamos a ler e a ler... tendo-as como nossas e delas não saindo, uns tempos...

Um abraço, Luís

João Roque said...

Estou-te a ler aqui da minha "selva" e está a fazer-me muito bem este reencontro com a família, em circunstâncias normais e muito calmas.
É pois daqui que te envolvo num abraço amigo a ti e aos teus; até quarta...

lusibero said...

DEI_TE,agora mesmo,meu amigo, a minha opinião...
abraço de lusibero

Anonymous said...

Quando, por um qualquer motivo, a mente nos suscita a série de problemas a que aludes,neste teu novo texto, lindissimo e artístico, como sempre,ficamos com a impressão angustiosa de que o destino humano, entre o berço e o túmulo, é trágico.É então que eu considero a nossa, de nós, seres humanos! posição, a respeito da Eternidade Transcendente, perfeitamente duvidosa."Humus", o quase diário de RAUL BRANDÂO sobre a condição humana, vivida ,também quase ,em primeira pessoa, representa, a par de outras obras como "OS POBRES" e " O POBRE DE PEDIR", um desfilar daquilo a que costuma chamar-se "a miséria encarnada"; encarnada, é claro, em cada tipo social, em cada um de nós.Isto porque dá a sensação de que o escritor se "delicia" a recordar tudo quanto o torturou, como homem-humano!
Como tu sabes ,Luís, nos princípios do século passado(tão perto ainda!)tomávamos contacto com clamores de outras misérias humanas, outros dramas da nossa miséria,por intermédio das leituras de obras de TOLSTOY, DOSTOIEWSKY E GORKI,cujas influências se fizeram sentir nos nossos escritores, principalmente nos neo-realistas, os quais se deixaram arrastar para a contemplação pacífica, (pachorrenta, até!) das dores do mundo, subjugado, por um motivo ou outro, pelo mundo circundante, tantas vezes "afogado" em sangue de mártires de revoluções sociais.
Mas os retratos de existências sofredoras, dominadas e mesmo automatizadas no sofrimento, encontramo-los, ao dobrar da esquina, nesta própria época em que nos encontramos;e damos por nós a murmurar e/ou a ciciar : "Mas isto ainda hoje é assim?"
E é verdade, Luís...Ambos sabemos isso, com a nossa experiência de dor espiritual...É só ver as nossas aldeias, na contemplativa procura de respostas para os "PORQUÊ"?
Vemos ,então, com desânimo, que esse desfolhar de realidades em todos os períodos históricos no que concerne ao sofrimento humano, não redime!É em momentos desses que a nossa cabeça começa a latejar e saimos, disparados, porta fora, para o meio da rua, na noite fria, à procura de um sopro divinal que nos traga paz.
Gosto especialmente, na obra de RAUL BRANDÃO, de "OS PESCADORES", pelo impressionismo pictórico que me permite um visualismo típico de quem interroga a existência; concordo,no entanto,que "HUMUS",pelas suas características de análise diarística do sofrimento humano, particular tanto quanto universal,permite que nos debatamos com as realidades tristes da nossa existência.E, se não fecharmos a porta, com raiva, para ir dar um passeio, enlouquecemos sãmente,podendo , até, fazê-lo, ao som de um trecho musical que nos eleve e nos ajude a atenuar as memórias...
Prosaicamente, o mesmo RAUL BRANDAO de que estamos a falar, diz, na pág.23 de "A FARSA":...ainda Deus é o menos; o pior é o diabo"...Isto a propósito das angústias com que nos debatemos ,ao assistirmos a tudo o que nos rodeia! Esse teu sofrimento, Luís, por exemplo...e pela simples razão de que não podes ,nem tu nem eu, endireitar a vida, para evitar lágrimas de outrém!
Sempre cá, contigo nestes pequenos- grandes dramas...LUSIBERO

Anonymous said...

O gosto que me dá ler os teus textos. Por exemplo, este detalhe: «(...) livros há que são autênticos sismógrafos emocionais que registam as nossas mais ínfimas variações de estados de alma e que se entranham perpetuamente nas nossas peles, ultrapassando os limites demasiado estreitos do espaço e do tempo.» Excepcional eloquência de uma escrita que se mete pelo corpo adentro e desperta toda a verdade em mim sobre os livros da minha vida. É um bem notável esse teu dom de escrever, essa graça no uso da palavra, uma tal comunicação que me toma inteiro. Bem-hajas!

Catarina Frade said...

Estão ali, em todos os livros que já li, as palavras que nunca me emocionaram. Luís, nunca li um livro que verdadeiramente me emocionasse. É realmente frustrante e penso nisso de quando em vez. Desconheça a razão. Catarina

bonecadetrapos said...

Caro Luís Galego:

a beleza de um qualquer livro reside no que aqui de si sublinho:
"um livro escrito para e sobre mim."
Como sabiamente nos dizia já Quintana.

Saudações e uma vez mais, parabéns pelo rigor de sua escrita, pela beleza que encerra.

*___bonecadetrapos__*

Inês Leitão said...

Este livro faz-me voltar à faculdade de letras. Lembro-me do meu professor na faculdade avisar que qualquer aluno deprimido estaria isento desta leitura. E o Humus era parte do programa.

Unknown said...

Conseguir perceber todos os dias que ainda sabemos e conseguimos sentir o que nos vai dentro é um alívio. Podermos ficar perturbados com o mesmo livro quase duas décadas depois é um privilégio.

Não é para todos

Unknown said...

Luís...Tenho lido os seus textos com atenção...que mais dizer? Falar sobre a estrutura narrativa? Sobre o sentimento? A QQualidade inegável? Isso é chover no molhado...Pouco mais podemos acrescentar em termos de crítica, apenas que me apraz "sentir" que tudo se encaminha para que os pequenos retalhos se transformem numa obra de ficção.
P.S. Uma das coisas que me seduz são as palvras usadas no seu sentido mais puro, mais"térreo"..."escavar no livro" remete-nos para a criação, para a lavoura, para o germinar da vida...é isso que a sua escrita é: uma vida de palvaras.

Unknown said...

Caro Luís,

li esta obra na juventude...deixou-me alguma inquietação que ainda não retomei para desvendar...

acho que, perante este veemente retrato de leitor,vou retirá-la da estante e olhá-la de novo!!!!

Luisa Paula said...

Li-te com a ansiedade que existe no tempo que me falta para poder voltar a ler-te :)
Um abraço
Gostei!!!

Violeta said...

"livros há que são autênticos sismógrafos emocionais que registam as nossas mais ínfimas variações de estados de alma e que se entranham perpetuamente nas nossas peles, ultrapassando os limites demasiado estreitos do espaço e do tempo".
eis uma verdade impossível de contrariar. Tão de acordo...
bjs

Maria P. said...

Existem #posts" não sou capaz de comentar, não seria suficiente fosse qual fosse o adjectivo escolhido.

Beijinho, Luís*

Nina Amorim said...

Ah, essas andanças virtuais de quem coleciona noites insones... por vezes nos acalentam com gratas surpresas.

Li várias passagens, não tudo. O conteúdo extenso e o adiantado da hora (aqui no Brasil são 4:48AM) implicam num grato retorno.

Parábens pelo blog, Luis.
Deixarei pegadas sempre que aqui passar.

Nina.

anjo said...

Luís,

mas o teu sítio também é um___________________batimento cardíaco, uma inquietação, um estremecimento, uma vertigem________________


Um abraço assim «««

Whispers said...

Ola!

Belo conto.....uma historia muito bem escrita.

Ja faz tanto tempo que nao voava neste ceu.
Como sempre teu blog esta 100%.

beijos mil
Whispers

BlueVelvet said...

Mesmo lendo-te há tanto tempo, não cessas de me surpreender com a profundidade de tudo o que escreves.
E a mudança verificada no teu blog deu-nos a conhecer outra faceta de ti.
Se um dia, o tal livro vier não vai ser mais um entre tantos.
Não é porque se tem um blog que se pode escrever um livro.
Mas não é o teu caso.
Beijinhos