Sunday, June 21, 2009

um sussurro e nada mais...

(The Death of Chatterton, Henry Wallis, 1856)

Eu pensava que um só gesto meu abria o Universo/Viajava mais do que o pensamento, como nuvens ou navios/Transportava-me além do Oceano/Em secretas viagens ia por onde as estradas me guiassem, as ruas desertas me acenassem, as buganvílias me sorrissem/Tinha no olhar a certeza do coração/Na voz o grito de libertação/Pensava-me eterno/Dos sentidos fazia um império de lantejoulas/À beira de um cais as noites duravam meses/De manhã despedia-me das estrelas e cumprimentava os ventos/Sentia a brisa lenta a roçar e estremecia a ouvir pássaros a cantar/Cumprimentava grandes luas/Abraçava a magoada monotonia do entardecer/Devorava enlouquecido frutos novos/Inventava países e desertos/Lia velhas histórias de marinheiros que desapareciam entre lençóis de algas/Erguia à beira mar a minha tenda/Fazia a vénia ao pôr do sol/Rompia a arquitectura da melancolia, com a bagagem dos sonhos do futuro/O mal, de todos o pior, foi confiar, fantasiando que esperar era a azul solução/Rindo e chorando/Pensando no amor confuso e na ausência/A pele e a alma gastas de tanto congeminar/Afinal, longos dias perdidos/Antes tivesse sido naufrago de grande tempestade/Incógnito cuspido à praia à luz do dia/ E não espectador exausto dos bailados da paixão e da solidão imensa/O silêncio, enfim, a minha cicatriz, mas também a minha mais triste e bela canção/

/Esta noite morrerei sem lágrimas como uma árvore nua/Quando a lua vier acariciar-me o rosto/E será tão apenas mais um sussurro que ecoará na noite da minha rua…
Luís Galego

15 comments:

Anonymous said...

Quando estou cansada e com sono (às vezes já pela madrugada dentro), agarrada a esta psicologia que me está a deixar à beira da psiquiatria, venho a este "lugar" beber um pouco da cultura que aqui se respira e, buscar mais um bocadinho de força para continuar.

Um beijo,Fátinha

cirandeira said...

A eternidade pertence aos bons poetas e escritores, que, queiramos ou não, estão fadados a preencher o vazio de nós, pobres mortais! Nada terá sido em vão, mesmo quando a pele e a alma estiverem gastas, porque tua poesia
permanecerá soberana e eterna para os que aqui permanecerem e mesmo para os que ainda virão...!

João Roque said...

Além de prosador e excelente contador de histórias, surpreendes-nos com este belíssimo poema...
Abraço.

AnaLee said...

O fim da ilusão, é disso que aqui se trata não é?
Muito rico o texto, como sempre!

Mel de Carvalho said...

...ou talvez não, quem sabe?

Hoje, Luís, neste teu registo, fizeste-me questionar se estava a ler poesia ou prosa ou ambos ...
Costumo dizer que, no meu caso escrevo (ou tento escrever). Quando começo nunca sei o que dali sairá: se "as fatias" e, por comodismo lhe chamarei poesia ou se em linha recta e então será a tal prosa ... pouco importa.

O que aqui li é de grande qualidade. Como sempre e cada vez mais.

Um beijo "brother",
Mel

Violeta said...

"O silêncio, enfim, a minha cicatriz, mas também a minha mais triste e bela canção"
Muito, muito bem escrito. Muito, muito bonito.
boa semana!

maria said...

Não me conhece, eu sei, mas isto parece que foi escrito para mim e a mensagem que tanto anseio chega em forma de poema...
"Afinal, longos diasperdidos/Antes tivesse sido naufrago de grande tempestade/Incógnito cuspido à praia à luz do dia/ E não espectador exausto dos bailados da paixão e da solidão imensa/O silêncio, enfim, a minha cicatriz, mas também a minha mais triste e bela canção/"
Apesar de não conseguir conviver com a solidão e com o silêncio, há esta voz (a tua,a do que escreves)que me chama e me acompanha e me dá um sinal de esperança. Na minha rua, esta noite, queria que ecoasse mais que um sussurro.
Obrigada Luís.

Unknown said...

"Chatterton quitte pour la peur"...

dei por mim a recordar este texto!!!

Talvez também um sussuro, ou pouco mais do que um grito.

Socrates daSilva said...

É tão bom vir aqui ler...

Abraço!

Anonymous said...

Cheguei ao fim da minha leitura ansiosa por saber quem seria o autor de tão belo e sentido poema. Para depois encontrar, maravilhada, a tua assinatura. Li de novo, ainda mais encantada, e para além de encantada orgulhosa por ter privado contigo e termos partilhado tantos momentos importantes das nossas vidas, ter entrado na idade adulta sendo tua amiga e a partilhar contigo praticamente tudo o que de importante acontecia comigo.



Dizes tu: “O silêncio, enfim, a minha cicatriz, mas também a minha mais triste e bela canção” é certamente esse um silêncio intimo que só tu conheces, porque o que tu nos dás não é silêncio é voz, é vida, é mensagem e são momentos de raro prazer em que a certeza de que a vida vale a pena é tão forte que parece que a sentimos fisicamente, aqui, sentada ao nosso lado a sorrir.

Obrigada

Ana Paula Teixeira

Penélope said...

Senhor Luís,
Deparei-me com palavras doces, como se estivesse a ler Fernendo Pessoa em seus heterônimos...
Estas páginas são afrescos que embalam a alma , muitas vezes, perdida de tanto caminhar pelas quadras cinzas do mundo.
Abraços da já sua fã
Malu

Penélope said...

Senhor Luís,
Deparei-me com palavras doces, como se estivesse a ler Fernendo Pessoa em seus heterônimos...
Estas páginas são afrescos que embalam a alma , muitas vezes, perdida de tanto caminhar pelas quadras cinzas do mundo.
Abraços da já sua fã
Malu

Maria Ribeiro said...

Na noite da tua rua vai ecoar,não só o teu sussurro, LUÍS.Vai ecoar ainda essa poesia linda que enche de puro luar o céu do teu despertar!E todos os dias, aparentemente perdidos, ecoarão no som da tua solidão, fazendo navegar a ânsia desse coração!
Não rompas a arquitectura da tua melancolia!Ela será imprescindível
na construção do mundo novo que sonhas...
Beijão de lusibero

Unknown said...

Estou a ouvir Ella Fitzerald em Blue moon... e este texto... poderiam ser palavras minhas (não sei escrever assim) mas traduzem o que eu queria dizer neste fim de tarde de um verão acabado de renascer.

Luís gosto deveras dos conteúdos dos seus textos e da forma como os escreve.
Obrigado

Unknown said...

Só posso repetir o que outros disseram: prosa poética, palavras alinhadas num sussurro que mexe connosco. Um registo no nível elevado de outros textos que vimos acompanhando há bastante tempo.