Wednesday, October 14, 2009

facho do destino...

Recordo com saudade e olhar húmido o teu riso tenro, suave, postura serena, gestos delicados, cabelos desatados, lembro o teu adormecer no terraço virado para o Tejo, de onde te levantavas como se tivesses dentro de ti uma criança aos tropeções, ficavas horas a fio deitada naquele lugar ameno, eras uma mulher enigmática, de ar sonhador e vago, desaparecida de todos os sítios da terra. Foste envelhecendo, açoitada por ventos funestos e duvidaram que alguma vez tivesses sido atraente, colocaram em causa o brilho do teu ser. Com o passar das estações tinhas-te metamorfoseado, cabisbaixa e alienada, uma deusa frustrada. Começou a faltar à roda dos teus olhos o cristalino eco da alegria e a nascer um rosto semeado de melancolia e cores monótonas, sentiste o fogo da vida tornar-se frio. Estou contigo no Casarão, mas de onde não se vê o rio, procuro a ternura súbita e acaricio-te a mão, mas tu não reages, estás sentada com o rosto afogado num pequeno livro de poemas de Eugénio de Andrade, nas mãos como num regaço, e não olhas, nem um beijo, uma lágrima ou um intimo lamento, simplesmente levantas a cabeça com um sorriso ausente, e baixas de novo os olhos cansados sobre as palavras do poeta, os mesmos versos, hora após hora, penso que deves ler o mesmo livro desde o nascer ao pôr do sol e talvez mesmo durante o crepúsculo em desmaio, ou talvez em noite de insónias voltes atrás e sublinhes o que te vi ler durante o dia, porque se alguma vez terminasses o livro não verias mais nenhum motivo para viver. Toda a minha sensibilidade se ofende, esmaga-me esta tua solidão, essa alma viúva, nutrida em ânsias de dor. Um dia um pressentimento far-me-á voltar e tu estarás morta, apagada num espaço arrefecido que não era o teu terraço, com o livrinho já lido aos pés
……………………………......................................e nenhum poema caberá nessa mágoa…
Luís Galego

* imagem retirada de aqui.

22 comments:

AnaLee said...

Tocante, maravilhoso. Neste texto Luís, cabem todas as mulheres do mundo.

João Roque said...

Comovente!
No dia 2 de Novembro, a minha Mãe completa 87 anos e obrigatoriamente este texto, naturalmente diferente da realidade da minha Mãe, reportou-me a esse acontecimento.
Abraço.

cirandeira said...

"Nada podeis contra o amor,
contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco!"
E ela era tão linda...só podia mesmo gostar de Eugenio de Castro. Que poeta!
Abçs

Anonymous said...

De novo e sempre a sensibilidade e o descernimento ditos da maneira como apenas o Infinito Pessoal sabe dizer. Fico suspensa ainda mais porque me revejo neste "facho do destino".
Obrigada por tanto
Albertina

cirandeira said...

Estou voltando por aqui para corrigir o nome do poeta. Logo após
ter postado o comentário, percebí o engano, mas aí já estava feito...
uurrrh Fiquei aguardando então a liberação p/tirar a dúvida;o autor do poema é Eugenio de Andrade!
Que distração horrível! Perdoem-me, por favor...
Abç

Anonymous said...

Gosto muito do jeito que utilizas as metáforas, as analogias.
Evito falar-te assim para não cair na técnica e esquecer os sentimentos.
Nunca olharei teus textos com olhares ténicos.

Não vejo tristezas ou quaisquer indícios de sentimentos de dor nessa senhora, porque a dor ela sentiu durante toda sua vida. Todos a sentimos.
Vejo uma mulher que "adoeceu-se", num terraço, à olhar às águas. E, ali, ela ficava, porque a água encantava-na e fazia-na lembrar de toda a vida vivida até ali.
O livro era para driblar quem pudesse chegar por onde ela ficava e perturbar-lhe o sossego, a reflexão e a profunda meditação que fazia pelos reflexos que a água trazia-lhe, ora bons; ora ruins.
Ela já estava à conectar-se à vida, mas não queria admitir ser a morte.
Todos nós passamos por isso.
É que raramente dá-se conta.
A mágoa. Sempre a mágoa. Deixamos tantas coisas por ela.
Eis, aqui, minhas impressões ;-)
E, sabes que não precisas de comentários.
Está bem assim?

Tongzhi said...

Muito bonito mas um bocado marcante. Penso que a maioria das pessoas já terá "vivido" uma situação parecida.
Abraço

Paty said...

muito bom o blog, muito bem escrito, e ótimas escolhas das imagens, parabéns!
visite http://moradadevenus.blogspot.com/

Maria P. said...

Sublime, claro.

Beijinho*

Carlos Faria said...

Lindo... comovente, um hino à velhice e à poesia vistas de mãos dadas.

Mar Arável said...

Com Eugénio de Andrade

a vida continua

Abraço

Nómada said...

A dor de ver alguém morrer aos poucos. Morrer alguns anos antes de ser levada para o escuro eterno.
A dor de pedir a um deus desconhecido que apague de vez os olhos amados, ainda abertos mas já tão ausentes.

Todos passamos por isto e custa tanto...

maria said...

Mãe e Eugénio de Andrade, Eugénio de Andrade e mãe... No entanto, tanta poesia aqui, a mesma nostalgia, a mesma dor, o mesmo sentir, o mesmo amor. Tanta saudade, saudade que emerge muito antes da ausência ...tantas saudades...
Abraço

Anonymous said...

Superbe.
F.Leitao

Violeta said...

Deixo apenas um bj e votos de bom domingo. Há momentos em que o silêncio nos grita...

Unknown said...

Mais vale tarde do que nunca...

Só hoje reparei no teu blog e vou andar por aqui, aos poucos, a ler.

Gosto é pouco...

beijo

partilha de silêncios said...

Passei por acaso, não conhecia o seu blog, faz tempo que não lia um texto de tão rara beleza, confesso que chorei!

Obrigada, por saber colocar em palavras, sentimentos tão belos e profundos.


bjs

jorge vicente said...

nenhum poema caberá nessa mágoa, caro amigo.

um grande abraço
jorge

Beth Cerquinho Artesanando a Vida!! said...

...estava passando e adorei seu blog..se me permite vou te seguir..parabéns pelos post's
Abraço

Vulcano Lover said...

Tão belo...

Anonymous said...

Evito pensar.
Retenho o sabor do texto.
E gosto!

m said...

Soube muito bem ler este texto a esta hora. Obrigada!
Beijinhos