Saturday, January 02, 2010

o rosto que habita no soneto...

Veio-me à memória o soneto que lera naquele Ofício Cantante. Surgiu-me, perfeito, na mente, apagando-se à medida que cada um dos versos substituía o seguinte, como uma corrida de mensageiros que se rendem no transporte do archote. As metáforas são a mais potente droga utilizada pelos poetas e um soneto nasce em sofrimento, sobre o asfalto e em cima do pó e do lixo. Ali onde reside a dor e aperta o peito, está também aquilo que salva, aquilo que quebra o mar gelado, que permite a vida exprimir-se sem disfarce. Aquele soneto é um grito e a leitura do mesmo é tão só um comentário a esse clamor. Não vale a pena ler o que não nos cava e o que não nos morde. Se lemos o que não nos desperta como um murro no crânio, para quê lê-lo? Aquele soneto percorreu-me, atravessando-me a cabeça, perfurando-me o corpo mas perfumando-me a alma e preenchendo o vazio da ilha de silêncio e apatia que é a vida dentro de quatro paredes, que rangem no escuro. Adormeci numa cadeira gasta e a certa altura acordei sobressaltado, com um estremecimento na espinha dorsal, citando em voz alta “O amador transforma-se de instante para instante, e sente-se o espírito imortal do amor criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas.”. Não vi senão em sonhos aquela visão de fantasia que é o rosto do poeta que arremessa chispas de fogo e desenha pedras preciosas. Um rosto indecifrável e deslumbrante, o rosto que habita no soneto.
Luís Galego

Ver imagem aqui.

17 comments:

Maria said...

Um excelente 2010 para ti, e obrigada por mais este post!

Um abraço

João Roque said...

Noto com evidente agrado o regresso ao habitual texto do final de semana no "Infinito Pessoal"...
E claro que ao nível a que já nos habituaste.
Obrigado.
Abraço grande.

Mar Arável said...

Belo

o teu regresso aos rostos

indecifráveis

metáforas real mente

Tudo de bom para si e para o seu espaço incontornável

Abraço

Anonymous said...

Sempre, na certeza de ir caminhando o caminhante que se vai aprisionando e ao mesmo tempo libertando na/pela escrita. Um óptimo Ano Novo neste Infinito Pessoal deslumbrante, Luís.
Albertina

Ricardo Passos said...

"... As metáforas são a mais potente droga utilizada pelos poetas..."
Caro Luís, continua a utilizar tais drogas, pois ao contrário de outras, estas causam uma dependência saudável.
Obrigado por mais este magnífico post.
Abraço

AnaLee said...

Já suspirava pelo post seguinte.
Bom texto.

Gilson Prior Micelli said...

Gostei muito de seu texto.
Sempre com muita sensibilidade e verdade .
Abraços

cirandeira said...

Herberto Helder realmente chega
às nossas entranhas de uma forma
alucinante! Tens razão quando dizes
que "não vale a pena ler o que não nos cava e o que não nos morde".
Talvez, por ser tão doloroso o ato
da criação, por ser tão sofrido o processo de crescimento, tentamos passar ao largo, pelas beiradas da alma.Nos entregamos a Morfeu pensando que estamos a salvo, mas
lá nos labirintos da imaginação, do inconsciente, anjos e demônios se debatem numa luta de vida ou morte, em busca do diamante precioso, envolto num fogaréu que "a faca não corta", mas que precisamos resgatá-lo para sobrevivermos. Este é o teu "ofício". Mesmo que não seja "cantante", ele te pertence. E chegou para ficar, e te dar socos
e pontapés na boca do estômago! E o resultado dessa luta tem sido um punhado de textos muito bons, pedras preciosas que irradiam fagulhas luminosas por essa blogosfera nossa de cada dia.

Um 2010 com muitas "mordidas" que sangrem a tua imaginação!
Um grande abraço

Anonymous said...

Bom começo de ano. Que 2010 permita muita inspiração e muitos textos que nos inspiram e fazem sonhar.
Não,não vale a pena ler aquilo que não nos cava e não nos morde. Mas aqui vale a pena sempre vir ler - fica um rasto de satisfação e de desassossego; às vezes as palavras atravessam-nos a cabeça, outras o coração, mas as emoções, essas, são despertadas e acompanham-nos ao longo do dia.

Um óptimo ano novo.
Um abraço.

angústias... said...

Eu sou quem sabes e não anónima.

maria said...

Não sou anónima. tenho andado por aqui. com muita angústia.

Gabriela Rocha Martins said...

excelente texto que me deixa a vontade de ler todos os demais

todavia porque

ainda mal regressada e com os pés mal assentes em 2010 ,terei de voltar com o tempo de me sentar e ler ,sem qualquer preocupação .por ora ,limito.me a desejar que o novo ano seja um somatório de criatividade e de coisas belíssimas

mas volto - podes deixar a porta aberta para entrar sem demora? obrigada



.
um beijo

Abraço-te said...

"o rosto que habita o soneto"...
"Aquele soneto é um grito e a leitura do mesmo é tão só um comentário a esse clamor"

e mais palavras para quê!!!!

Abraço-te

Carlos Faria said...

"Se lemos o que não nos desperta como um murro no crânio, para quê lê-lo?"
Forte e verdadeiro, afinal porque desperdiçar tempo escasso se existe tanta coisa boa para ler?

Maria Julia said...

Estonteantes, deslumbrantes...

todos os textos que li mais de três vezes, até agora...

Não tenho mais uma vez, palavras ou adjectivos, para expressar...

Apenas...muito obrigada por existir...

Beijinho. PARABÉNS.

ANITA said...

Olá Luís, Boa Noite!

...E os poetas e a sua poesia são a minha droga!
Que bom que te conheci!
Beijos grandes muitos de agradecimento!
Ana

Ana Maria de Portugal Lopo de Carvalho said...

Oh,Luís,
Como gosto desta prosa poética tão característica em si.
"Transforma-se o amador na coisa amada"...
Esses textos muito bons, "pedras preciosas que irradiam fagulhas luminosas por essa blogosfera nossa de cada dia"..
Continua a encantar-nos e a te deixar morder pelo que te move, caro Luís
Beijinho
@n@m@ri@deportug@l