Thursday, November 09, 2006

as pequenas memórias....

José Saramago entrevistado por José Carlos de Vasconcelos no Jornal de Letras de hoje. Breves highlights com sublinhado meu:
(...)
José Saramago evoca a infância e a juventude, num livro a que deu o nome de As Pequenas Memórias. Será lançado na Azinhaga, aldeia onde nasceu, no próximo dia 16, quando completar 84 anos.

Porque é que foi doloroso escrever estas memórias?
Há coisas que são dolorosas e, por vezes, até me ponho a duvidar se deveria tê-las escrito? Não vou fazer um drama com a injustiça da bofetada que o meu pai me deu, mas decidi contá-lo para chamar a atenção para a necessidade que os adultos têm de compreender as crianças. Dantes havia nos jornais uma secção, que infalivelmente se chamava Cuidado com as crianças, onde apareciam notícias de coisas que tinha acontecido a miúdos como quedas e desaparecimentos.
Foi por isso que foi doloroso fazer este livro?
Não tanto por isso, mas mais por causa da chamada violência de género. Sabemos que era um problema comum, tão comum que eu até falo nisso. Este ano, só em Espanha, foram assassinadas mais de 60 mulheres. Como é que isto pode passar por ser a coisa mais natural do mundo? Claro que o meu pai não assassinou a minha mãe, mas tratou-a mal algumas vezes. E foi isso que me custou muito a pôr no papel (…) A família é o lugar de todas as tensões e conflitos. A história – e a vida de todos nós – está cheia disso.
Como é que aquele rapaz, filho de gente humilde, neto de analfabetos, consegue sair daquele ciclo de pobreza, tornando-se no que é hoje?
Do ciclo da pobreza pode sair-se com a sorte grande.
Mas a si nunca lhe saiu a sorte grande.
(…) Nunca fui uma pessoa ambiciosa, nunca tratei de estabelecer um plano para ir daqui para ali e, depois, dali para acolá. Teria talvez uns 18 anos quando disse uma frase que, na boca de um adolescente, parece não ter qualquer sentido: aquilo que tiver que ser meu às mãos me há-de vir ter. Lembro-me perfeitamente como se estivesse a dizê-lo agora. Parece uma espécie de condição fatalista, de que vieste ao mundo e, portanto, não tens que fazer nada porque aquilo que tiver que acontecer, acontece. Pões-te digamos debaixo da figueira e esperas que o figo te caia na boca quando estiver maduro e já está. Não é isso. Fiz uma quantidade de coisas na minha vida.
Foi importante ter havido um professor que chamou a atenção do seu pai, dizendo que ali estava um bom aluno?
(…) Aquilo que realmente mudou alguma coisa foi a minha transformação em leitor.
Além de uma breve referência à Guerra Civil de Espanha, não existem neste livro quaisquer referências políticas. Essa consciência veio-lhe muito mais tarde?
(…) Vá perguntar aos moços que agora têm 13 anos que consciência política é que eles têm. Naquela altura, a questão nem sequer se punha porque, no fundo, pode dizer-se que não havia vida política. Havia jornais censurados e, sobretudo, havia um regime bastante saloio. Basta ver as fotografias de então – os ministros de Salazar eram todos burgessos (para usar uma palavra que hoje não se usa muito, mas que tem uma capacidade de dizer extraordinária). Salazar, esse, não tinha cara de burgesso, ainda que o fosse.
Estas memórias acabam quando tem 15 anos. A vida daqui em diante não merece ser contada?
Francamente, teria vergonha de escrever uma autobiografia completa com os meus triunfos literários, sociais ou políticos. Não quer dizer que não haja grandes autobiografias, que as há, mas penso é um pouco como – a imagem é um brutal, ou talvez não? – se eu me assoasse e, depois, olhasse para o lenço para ver o que é que saiu. O meu propósito foi só este – a infância, as raízes que eu tenho, que eu continuo a ter e a alimentar. O resto? Uma autobiografia até aos 84 anos de vida? Quem é que aguentaria lê-la?
A propósito da polémica em torno de Descascando a Cebola, de Günter Grass, já disse serem hipócritas alguns dos comentários que se fizeram.
Sobre isso há um episódio recente com uma certa piada. Dei uma entrevista a um jornal brasileiro, O Estado de São Paulo, e falaram-me nisso. Eu respondi que parece que chegou a altura de eu próprio fazer a minha confissão. E contei que estive nas juventudes salazaristas, que se chamavam Mocidade Portuguesa, que era automático, que todos tinham que estar lá. E acrescentei: a única coisa que eu consegui foi nunca usar o fardamento. Rematei, dizendo que aquela foi a minha primeira vitória contra o fascismo. Então não é que o jornal tomou a sério esta coisa e, em perguntas suplementares que me mandou, tomou a minha pertença à Mocidade Portuguesa, onde inevitavelmente todos estávamos, como algo similar àquilo que aconteceu com o Günter Grass? A imprensa é um perigo. Sobretudo quando não entende aquilo que se lhe diz (…).
Para escrever este livro, refreou alguns episódios da sua memória?
Não. A história da questão familiar foi a única coisa em que hesitei, em que duvidei, até me decidir. Há também aquela história horrorosa do arame que, aos 3 anos, me meteram pela uretra adentro. Mas também essa senti que tinha que lá estar.
(…) Não estou a dizer que aqueles tempos eram melhores, é evidente que não eram melhores. Quando eu nasci, a esperança de vida na minha aldeia era 33 anos. Havia velhos, mas sobretudo havia velhos que não o eram na idade, que apenas o eram na aparência. A partir dos 35/40 anos, todos eram velhos. Caíam os dentes, apareciam as rugas e os esforços físicos deixavam marcas na maneira de estar e de andar. Não era o paraíso. Mas, para uma criança, parecia o paraíso.
Mas escreve com uma certa nostalgia daqueles tempos.
Certas coisas marcam. Não creio que, no nosso país, haja muita gente que possa dizer que teve uns avós que metiam os bácoros na cama para que não morressem, por causa do frio. E se a alguém (como é o meu caso) isso aconteceu, isso forma uma pessoa. Dirão: que tem isso a ver com a formação? Tem tudo a ver com a formação.
«O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever».
Não sabia ler nem escrever, mas para mim a figura dele foi fundamental. Era um homem alto e magro, muito magro, seco de carnes. E falava pouco(...)
Fica a ideia que a sua mãe também endureceu muito, com a morte do seu irmão.
Creio que sim. Não é que a minha mãe não gostasse de mim, mas a morte do meu irmão fez-lhe muito mal. Chamo-lhe secura, endurecimento? Eu pedia-lhe um beijo e ela não mo dava ou, então, quando dava, era sempre um beijo de raspão. Não é que ela não me quisesse, mas a morte do meu irmão deve, de facto, tê-la endurecido. Também não é que ela que quisesse esconder os seus sentimentos, mas àquele outro filho também podia acontecer o mesmo? Só muito mais tarde é que consegui olhar para esta situação de uma maneira já mais objectiva. Naquele momento só me doía e, sobretudo, não compreendia porquê. Mas, enfim, tudo acaba por ter a sua explicação e ocupar o seu lugar.

1 comment:

Anonymous said...

Saramago......¿Iberista?