noutro mundo, noutra época. noutra lógica. noutra vida…
No grande portão que dá acesso ao mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, um letreiro diz: “Clausura”. É a Cartuxa de Évora, o único convento em Portugal onde os monges vivem verdadeiramente para o silêncio e a contemplação. A um fotógrafo e um repórter foi concedido o privilégio raro de entrar no templo da solidão. E desvendar parte do seu segredo.
O Natal tem destas coisas, recebi, entre outros, um livro precioso. Uma obra que estabelece bem a diferença entre os monges e nós: eles preferem a solidão e o silêncio. nós escolhemos a solidão e o ruído. O Segredo da Cartuxa retrata a Cartuxa de Santa Maria Scala Coeli, único convento em Portugal da Ordem Cartusiana, fundada por São Bruno há mais de 900 anos. O livro retrata a vida do único mosteiro contemplativo masculino no país, no qual cada monge vive e trabalha sozinho na sua cela quase todo o tempo. Deslizam como bichos rente aos muros. Vêm em fila, das suas celas para a capela. Surgem seis de um lado, seis de outro do grande claustro, um após outro, em silêncio, cabeça baixa, capuz a cobrir a cabeça, todos na segunda metade da vida. Por uma vez não foi preciso ser monge para que outros homens entrassem no Convento, em Évora: o livro abriu as portas de um mundo de silêncio, clausura e despojamento. O recolhimento habitual do único mosteiro contemplativo masculino do país foi perturbado para os irmãos cartuxos abrirem as portas da sua casa e darem as boas-vindas a dois estranhos curiosos para desvendar os rituais e o sentido do seu modo de vida. Fruto de seis anos de visitas à Cartuxa, apesar dos repetidos «não» ouvidos da boca do padre Isidoro. Os autores não perceberam porque os deixaram entrar, recordando as várias vezes em que o prior tentou demovê-los de continuarem a pesquisar material para o livro. O barulho no convento é anormal, mas uma vez na vida não faz mal, referem os monges, compreendendo a curiosidade e reconhecendo que a vida de um monge pode ser desconhecida e incompreensível, especialmente para a gente que vive acostumada ao hedonismo. Para um leigo, parece haver nos monges um orgulho do seu silêncio. Um tem uma voz fanhosa, outro um sotaque anglo-saxónico, outro soa como uma gralha rouca, outro emite um som para dentro, outro marca apenas o final de cada frase, outro arrasta uma ladainha sonolenta, outro um sopro de coruja moribunda, mas o efeito final é de uma beleza misteriosa. “Oramos com a voz, com a mente e com o corpo”, esclarece o padre prior. Falam da sua escolha com serenidade, alegria e sem deslumbramento, como se estivessem completamente certos de que foi a correcta. Mas há uma diferença entre nós e os doze homens que habitam o convento: por muita fé que se tenha, é preciso uma dedicação total para se deixar o mundo «lá fora» e aceitar que se está num convento para toda a vida. A vida de um monge cartuxo é austera, pratica-se a solidão, a Cartuxa edifica pelo silêncio. Apesar de poder parecer uma boa maneira de fugir do mundo e da vida, é um modo de existência que não se recomenda aos ensimesmados. A introversão muito forte acaba por ser inimiga da solidão. Para ser monge é necessário um equilíbrio psicológico muito forte, para conseguir suportar a austeridade e o silêncio. Quando questionados sobre as saudades do que deixaram para trás, respondem que o coração reclama dos seus ao princípio, mas contrapõem que as saudades passam e a recompensa é a permanente alegria espiritual em que vivem. Oração, trabalho e descanso são os três eixos fundamentais. Vivem independentes e auto-suficientes procurando a sensação de viver como os antigos eremitas que estiveram na génese da ordem. Uma condição fundamental para viver assim é acreditar que Deus é o ser único, é o único que existe, os outros só vivem. A casa da ordem em Évora foi construída no fim do século XVI e dedicada à Virgem. Foi-lhe dado o nome de «Scala Coeli», a Escada do Céu. Em 1834, quando o regime liberal extinguiu as ordens religiosas, os monges foram expulsos e os seus bens nacionalizados. O convento passou a ser Hospício das Donzelas Pobres de Évora, foi escola de agricultura e foi comprado ao Estado pela família Eugénio de Almeida, que em 1960 acabou por o devolver à ordem. O edifício é hoje propriedade da Fundação Eugénio de Almeida, que assegura a sua conservação.
Viver em clausura não significa que os monges não continuem a ter os olhos postos no mundo. Informam-se de modo a poderem animar as conversas. As notícias relacionadas com a igreja e «os cataclismos» são tópicos de especial interesse. A sua vida tem um plano traçado, dia a dia, para sempre. Mesmo depois do fim não deixarão o convento: no centro do claustro, dominado por ciprestes e laranjeiras, há um pequeno cemitério com oito cruzes negras. Austeras, como se quer no Convento da Cartuxa, tanto na vida como na morte.
Nem tudo é obvio, irrompe o segredo que alimenta algumas especulações surpreendentes, o que, revelou o padre Antão aos jornalistas, "incomodou um pouco a parte em que eles falam de coisas más a acontecer aqui dentro do convento", referindo-se à misteriosa mensagem que um dos irmãos tentou, a todo o custo, passar.
dia a dia, para sempre!!!
Também nesta linha há que referir o documentário de Philip Groning, que retrata a vida dos homens no Mosteiros de Grand Chartreuse nos Alpes: O Grande Silêncio
Links:
Cartuxa: Viagem à casa dos últimos homens que sabem escutar - Vídeo do jornal Público
Cartucha - informação da Rádio Renascença
Cartucha - informação RTP
Entrevista com Philip Gröning, realizador de O Grande Silêncio, antes do lançamento de O Segredo da Cartucha
No grande portão que dá acesso ao mosteiro de Santa Maria Scala Coeli, um letreiro diz: “Clausura”. É a Cartuxa de Évora, o único convento em Portugal onde os monges vivem verdadeiramente para o silêncio e a contemplação. A um fotógrafo e um repórter foi concedido o privilégio raro de entrar no templo da solidão. E desvendar parte do seu segredo.
O Natal tem destas coisas, recebi, entre outros, um livro precioso. Uma obra que estabelece bem a diferença entre os monges e nós: eles preferem a solidão e o silêncio. nós escolhemos a solidão e o ruído. O Segredo da Cartuxa retrata a Cartuxa de Santa Maria Scala Coeli, único convento em Portugal da Ordem Cartusiana, fundada por São Bruno há mais de 900 anos. O livro retrata a vida do único mosteiro contemplativo masculino no país, no qual cada monge vive e trabalha sozinho na sua cela quase todo o tempo. Deslizam como bichos rente aos muros. Vêm em fila, das suas celas para a capela. Surgem seis de um lado, seis de outro do grande claustro, um após outro, em silêncio, cabeça baixa, capuz a cobrir a cabeça, todos na segunda metade da vida. Por uma vez não foi preciso ser monge para que outros homens entrassem no Convento, em Évora: o livro abriu as portas de um mundo de silêncio, clausura e despojamento. O recolhimento habitual do único mosteiro contemplativo masculino do país foi perturbado para os irmãos cartuxos abrirem as portas da sua casa e darem as boas-vindas a dois estranhos curiosos para desvendar os rituais e o sentido do seu modo de vida. Fruto de seis anos de visitas à Cartuxa, apesar dos repetidos «não» ouvidos da boca do padre Isidoro. Os autores não perceberam porque os deixaram entrar, recordando as várias vezes em que o prior tentou demovê-los de continuarem a pesquisar material para o livro. O barulho no convento é anormal, mas uma vez na vida não faz mal, referem os monges, compreendendo a curiosidade e reconhecendo que a vida de um monge pode ser desconhecida e incompreensível, especialmente para a gente que vive acostumada ao hedonismo. Para um leigo, parece haver nos monges um orgulho do seu silêncio. Um tem uma voz fanhosa, outro um sotaque anglo-saxónico, outro soa como uma gralha rouca, outro emite um som para dentro, outro marca apenas o final de cada frase, outro arrasta uma ladainha sonolenta, outro um sopro de coruja moribunda, mas o efeito final é de uma beleza misteriosa. “Oramos com a voz, com a mente e com o corpo”, esclarece o padre prior. Falam da sua escolha com serenidade, alegria e sem deslumbramento, como se estivessem completamente certos de que foi a correcta. Mas há uma diferença entre nós e os doze homens que habitam o convento: por muita fé que se tenha, é preciso uma dedicação total para se deixar o mundo «lá fora» e aceitar que se está num convento para toda a vida. A vida de um monge cartuxo é austera, pratica-se a solidão, a Cartuxa edifica pelo silêncio. Apesar de poder parecer uma boa maneira de fugir do mundo e da vida, é um modo de existência que não se recomenda aos ensimesmados. A introversão muito forte acaba por ser inimiga da solidão. Para ser monge é necessário um equilíbrio psicológico muito forte, para conseguir suportar a austeridade e o silêncio. Quando questionados sobre as saudades do que deixaram para trás, respondem que o coração reclama dos seus ao princípio, mas contrapõem que as saudades passam e a recompensa é a permanente alegria espiritual em que vivem. Oração, trabalho e descanso são os três eixos fundamentais. Vivem independentes e auto-suficientes procurando a sensação de viver como os antigos eremitas que estiveram na génese da ordem. Uma condição fundamental para viver assim é acreditar que Deus é o ser único, é o único que existe, os outros só vivem. A casa da ordem em Évora foi construída no fim do século XVI e dedicada à Virgem. Foi-lhe dado o nome de «Scala Coeli», a Escada do Céu. Em 1834, quando o regime liberal extinguiu as ordens religiosas, os monges foram expulsos e os seus bens nacionalizados. O convento passou a ser Hospício das Donzelas Pobres de Évora, foi escola de agricultura e foi comprado ao Estado pela família Eugénio de Almeida, que em 1960 acabou por o devolver à ordem. O edifício é hoje propriedade da Fundação Eugénio de Almeida, que assegura a sua conservação.
Viver em clausura não significa que os monges não continuem a ter os olhos postos no mundo. Informam-se de modo a poderem animar as conversas. As notícias relacionadas com a igreja e «os cataclismos» são tópicos de especial interesse. A sua vida tem um plano traçado, dia a dia, para sempre. Mesmo depois do fim não deixarão o convento: no centro do claustro, dominado por ciprestes e laranjeiras, há um pequeno cemitério com oito cruzes negras. Austeras, como se quer no Convento da Cartuxa, tanto na vida como na morte.
Nem tudo é obvio, irrompe o segredo que alimenta algumas especulações surpreendentes, o que, revelou o padre Antão aos jornalistas, "incomodou um pouco a parte em que eles falam de coisas más a acontecer aqui dentro do convento", referindo-se à misteriosa mensagem que um dos irmãos tentou, a todo o custo, passar.
dia a dia, para sempre!!!
Também nesta linha há que referir o documentário de Philip Groning, que retrata a vida dos homens no Mosteiros de Grand Chartreuse nos Alpes: O Grande Silêncio
Links:
Cartuxa: Viagem à casa dos últimos homens que sabem escutar - Vídeo do jornal Público
Cartucha - informação da Rádio Renascença
Cartucha - informação RTP
Entrevista com Philip Gröning, realizador de O Grande Silêncio, antes do lançamento de O Segredo da Cartucha
8 comments:
Querido Luis,
coube-me inaugurar este espaço de excelência.
Adorei, embora tenha muita dificuldade este tipo de vida, como alías o das Carmelitas.
Mas numa coisa estás certo:eles preferem a solidão e o silêncio. nós escolhemos a solidão e o ruído.
Beijinhos
Caro Luís,
Que presente bonito!!!! Um livro que vou procurar...
E todo este texto deixou-me uma vontade imensa de o ler...
Curiosamente, ou não, é um dos aspectos da vida que me interessa muito...
Sempre que tenho hipótese...ao visitar o nosso património procuro o silêncio dos claustros e alguns têm tanto para dizer!!!!
"Brigados" por mais este excelente post!!!!
Não sou um homem de fé mas admiro estes monges que num mundo como o de hoje vão viver em silêncio e solidão para um convento.
Enquanto o Vaticano vive no luxo e opulência, dá que pensar o modo de vida destes homens.
Vi o "Grande silêncio" e agora fiquei com curiosidade de ler o livro.
Um abraço.
Ler e saber mais. Parabéns.
"nós escolhemos a solidão e o ruído" nestas palavras está tudo resumido.
Excelente.
Beijinho Luís*
gostei muito de ler. não me é fácil compreender esta opção. será uma, entre tantas!
quanto ao dia a dia, para sempre!
não serão também assim os nossos?
abraço
luísa
Já tinha ouvido falar do livro e do filme, e sempre me impressionou muito a vida destes monges, que até compreendo...
Apenas uma questão: não estou certo disso, mas parece-me que este mosteiro, abre por vezes excepçõe3s e aceita para uns dias de "retiro", leigos que ali vão buscar refúgio, descanso ou alento para enfrentar a vida; estarei enganado?
Abraço.
A não perder!
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