Tuesday, January 15, 2008

o que resta do dia...

E desatei a ler esta poesia leve, em que cai a sombra dos dias e os pesadelos da memória, a leveza das lembranças também, anotações que serão, para que nada esqueça, para que alguma coisa se salve, a poesia será «o que resta do dia», na expressão tão pertinente que foi colher a Freud. E a ela, que tanto gosta da lentidão, do correio por via marítima (título da sua primeira recolha), tenho-a lido devagarinho, há sete anos que a vou lendo, afinal, sem atropelo, há poetas assim, a sua poesia é lenta, adagio molto.
Jorge Silva Melo

Fim de tarde na Avenida João XXI. A propósito de O que resta do dia, antologia de poesia e prosa de Judith Herzberg, Jorge Silva Melo leu no Pequeno Auditório da Culturgest poemas da autora neerlandesa na sua presença. A escritora que começou a publicar nos anos sessenta é considerada uma das vozes mais representativas da poesia contemporânea europeia. Afirmou uma vez: “Evito afirmações moralistas (…). Tento que o público experimente a mesma confusão que eu, quando observo a realidade.” O pós leitura esteve a mais. Onde há poesia com esta peculiaridade, qualquer ruído — especialmente se tolo, como fatal é quando se estimula a plateia a manifestar, é inútil. Ainda assim, o essencial perdura e é muito confortante.

Coragem
A noite deixou-me outra vez transtornada
lentamente a manhã se enche
de palavras que eu sei de certeza
que significavam alguma coisa, mas o quê?
que ontem significava alguma coisa.

Andar é balançar sobre os pés,
vejo na rua os seres de sangue quente
que tiveram também a inexplicável coragem
de se levantarem
em vez de ficarem deitados.

Nunca ninguém tem a certeza de nada,
de ser amado, de ser abandonado
tudo é possível e tudo é permitido
tudo sucede em alternância.

Agora me lembro o que queria dizer:
enquanto isso não trouxer infelicidade
é uma sensação agradável. Mas no fundo
somos doces como Turkish delight
numa lata cheia de pregos.

Judith Herzberg
Trad. Ana Maria Carvalho Lemmens

7 comments:

M&S said...

Este blog é um desafio à inteligência!...
Bem haja!
:)

(Ai que inBeja!!! lol)

pin gente said...

gostei muito de ler, luís!
e tanta gente vive a infelicidade como um karma... e eu sei que há altura em que nos punimos por sermos felizes, como se não tivessemos esse direito.
agora, sei que temos... sei que tenho!
a felicidade é uma sensação muito agradável.
abraço
luísa

isabel mendes ferreira said...

Coragem.


o que nos falta.


a muitos.


a outros sobra.


a Si Luis sobra a capacidade de nos fazer sair.evadir. deste lado do chão.



beijo.

_____________encantado.

avelaneiraflorida said...

EXCELENTE, caro LUÌS!!!!!

"Brigados" por mais este post!!!

Maria P. said...

Magnífico.

Um beijinho*

tufa tau said...

a noite!
por um lado leva-nos a coragem... por outro, traz-nos o aconchego de estar a salvo, longe do mundo...

gostei muito
abraço

Outonodesconhecido said...

As coisas que por aquis e disseram na minha atarefada ausência. Gsotei do poema e do resto também, como sempre!
Boa semana.
Ah! gostei do filme "Expiação". por mais que queiramos nunca se expia algo que pesa na consciência, há uma tentaiva, alivia-se o fardo mas bem lá no sótão existe a dor de não se ser nobre, acho!