Tuesday, June 10, 2008

tão só um dia...

Um filme.
Un homme perdu. "O filme encontra a sua origem na minha relação particular com o meu país, o Líbano. Eu vivo em França e depois de uns anos e com o tempo, tive a impressão de perder a visão do país de onde eu venho, como um barco que desaparece no horizonte. Como se a minha vida não fosse nem aqui, nem lá. É esta a razão pela qual eu quero contar a história de dois homens e não de um só. (...) Acabam por ser a frente e o verso de um só. Um árabe e um ocidental que se perdem, desaparecem, reaparecem... e que finalmente se esquecem de onde vêm" (Danielle Arbid.). Um fotógrafo francês palmilha a terra em busca de experiências extremas. Na Jordânia, o seu caminho cruza-se com o de um homem misterioso, em fuga há anos, não se sabe do quê. O fotógrafo vai tentar desenterrar a sua história e persiste em viajar com ele, num périplo pelo Oriente que atravessa a Síria, a Jordânia e o Líbano, um universo recheado de riscos e interdições. Em Un Homme Perdu a realizadora dá robustez ao anseio de fuga, usando-se para esse efeito do retrato dos dois viajantes. Rejeitando o facilitismo do bilhete-postal turístico, esta longa-metragem oferece a oportunidade de mergulhar na atmosfera estranha de uma cidade desconhecida, cheia de fronteiras suspeitas, armadilhas e de bizarros refúgios. É explorado esse desejo de liberdade e a violência que lhe está subjacente. Crónica de duas personagens – uma amizade particular de dois esfolados vivos que se alimentam um do outro, como os vampiros – que procuram um lugar no mundo, mas que guardam dentro de si uma revolta brutal, não negociável…

Um livro.
Miguel Esteves Cardoso (MEC) numa crónica em que disserta sobre o primeiro amor parece suspirar ao escrever que “(…) o primeiro amor fica com a metade mais selvagem e inocente de nós”. Já Padre António Vieira sustentava “Questão curiosa nesta Filosofia, qual seja mais precioso e de maiores quilates: se o primeiro amor, ou o segundo? Ao primeiro ninguém pode negar que é o primogénito do coração, o morgado dos afectos, a flor do desejo, e as primícias da vontade. Contudo, eu reconheço grandes vantagens no amor segundo. O primeiro é bisonho, o segundo é experimentado; o primeiro é aprendiz, o segundo é mestre: o primeiro pode ser ímpeto, o segundo não pode ser senão amor. Enfim, o segundo amor, porque é segundo, é confirmação e ratificação do primeiro, e por isso não simples amor, senão duplicado, e amor sobre amor. É verdade que o primeiro amor é o primogénito do coração; porém a vontade sempre livre não tem os seus bens vinculados. Seja o primeiro, mas não por isso o maior” (ver Padre António Vieira, in "Sermões”). A última edição da Time Out/Lisboa questionava se existem assuntos intemporais? O amor é um desses temas e, felizmente, há quem saiba compor sobre ele de forma singular. Alguns artesãos da escrita dão cartas nessa empreitada. Essa é a virtude da obra de um dos mais perspicazes autores russos. Refiro-me a Ivan Turguénev, escritor de primeira água, e àquele que foi um dos últimos livros que escreveu: O Primeiro Amor. Turguénev viveu um dos mais afamados casos de amor da época com a cantora de ópera de nacionalidade espanhola Pauline Garcia Viardot. O relacionamento entre ambos prolongou-se até à velhice, com o consentimento e a cumplicidade do marido da solista. Turguénev descreve em O Primeiro Amor, a descoberta afectiva de um mancebo de 16 anos. Novela com pouco mais de cem páginas, contada na primeira pessoa, dá a dimensão tão trágica quanto feliz de uma iniciação. “Foi no Verão de 1833, tinha eu dezasseis anos”, começa a contar Vladímir Petróvitch naquele que é uma exposição dirigida a um grupo de amigos. O autor, neste belo livro, vem comprovar que não há cânones no que ao (primeiro) amor diz respeito. Se fosse possível ser gerido, ser pressentido, ser agendado, ser reflectido, não seria primeiro. A única fórmula é: não pensar, não resistir, não desconfiar. Voltando a MEC também comungo da opinião que o primeiro amor não se esquece. Parece impossível porque foi. Não deu nada do que se quis. Não levou a parte nenhuma. O primeiro amor deveria ser o primeiro e esquecer-se, mas toda a gente sabe, durante o primeiro amor ou depois, que é sempre o último…

Um dia
Um único dia abre-me as portas para outros mundos, permite-me transitar por atalhos diversos, perder-me no labiríntico de um enredo formado por palavras e imagens. Quando termino o livro ou saio da sala de cinema fico diferente. Quando leio a última página ou quando as luzes da sala se acendem sinto que me apetece andarilhar novamente pelas páginas e revisitar as imagens para descobrir novos caminhos, diferentes sentidos, outras experiências ou repetir toda aquela agitação de sentimentos e lutas interiores entre o lógico e o ilógico e tudo o que circula pelo meio. Através da leitura, das imagens e dos sons descubro que existe um mundo que se cria e recria. Este é o poder da arte, o poder de falar da natureza humana, de forma exemplar e inextinguível. Mergulhar nas artes é como o círculo de Ana Hatherly, muito oportunamente citado por Ana Catarina M. Ferreira (in Ulisses, o texto magnificamente infinito: A odisseia de editar um texto proteico):

“(...)

Nele se inclui todo o mistério

E toda a sapiência é o que está feito,

Perfeito e determinado,

É o que principia

No que está acabado.”

É verdade que alguns dos meus dias me transportam para Ulisses, obra-prima da literatura. Catalogações desta natureza são feitas acerca de várias obras, mas a realidade é que o livro de Joyce marcou de forma indelével o mundo das letras, tornando-se numa das “catedrais da arte literária moderna e influenciando a produção escrita de muitos escritores desde então” (Ana Catarina M. Ferreira). Num desses dias abalroei na sala 2 do King onde consenti que Danielle Arbid me contasse a história de um homem perdido; li aos bochechos o livro do russo Turguénev (enquanto esperava que a sessão começasse; no carro, enquanto L. conduzia e em casa ao som de Katia Kabanova de Léos Janacek, pela London Philharmonic Orchestra). No átrio do cinema cruzo-me com V. (com quem não falava, seguramente, há mais de oito anos), agora recuperada de queda quase fatal relata-me o dia que apressada para um lançamento de Lobo Antunes no S. Luiz se estraçalhou toda, tombando de umas escadas, numa cena digna de um filme de Wes Craven. Venceu, felizmente, embora com a consciência que as bibliotecárias também se abatem. Mas esse dia apinhado de neologismos, palavras-valises, doutas citações, ironias e trocadilhos ainda me levou ao hospital (autentico teatro operático, onde não faltam tenores, contratenores, sopranos, misérias e lágrimas; onde nem sequer escasseiam Toscas cantando angustiadas a sua “Vissi d’arte”, ou Otellos nos seus “Niun mi tema”, vendo as suas Desdemona mortas......por suas mãos!) para visitar R., mãe de uma amiga íntima; acenar à pressa a farmacêutica RM. que de tanto ansiar um filho, aguarda agora hospitalizada a vinda de dois; cortar o cabelo no TM Coiffure (com o Agnaldo [?] a relatar-me a sua vida, quase, intima); ir ao Arranjos Express buscar o fato do J. para o seu baile de finalistas, sim, a despedida do 9 ano; telefonar à mãe para fazer a diagnose diária das indiscrições do círculo familiar; receber telefonemas e msns. Marcar coisas para dia seguinte; pensar no CV da LC., para que possa ser avaliada de acordo com as suas capacidades e não conforme jogos de bastidores, indecentes e cruéis, que alastram na coisa pública. Um dia, um livro, um filme e não sou eu o ser humano defeituoso e idiossincrático Mr. Bloom. Mas é por isso que eu aprecio James Joyce, por que qualquer simples mortal se torna um herói homérico, não em luta contra monstros, deuses e sereias hipnóticas, mas na eterna luta pela vida, na trivialidade do dia-a-dia. Que pode ser resumido nos oitenta mundos percorridos em um único dia, como Mr. Bloom, descrito magistralmente pelo escritor irlandês, que tanto aprecio…

16 comments:

Anonymous said...

Tenho de ver o filme stop. Já parei a meio do Ulisses três vezes stop Serei jamesjoyçofóbico? stop
. Fiquei viciado em Miguel Esteves Cardoso desde o tempo em que ele escrevia críticas músicais. A(s) Causa(s) das Coisas marcaram toda a minha adolescência, como me marcaram todos os periódicos que dirigiu ou onde publicou. Nunca o deixei de ler. Acho-o um marco demasiado importante no panorama cultural português a partir dos 80's, na irreverência da nossa tenra democracia e numa certa forma - citadina e desassombrada - de fruição da modernidade possível.

Anonymous said...

Depois deste magnifico e heterogéneo post, lembrei-me dum filme que vi há muito "Heróis como nós".
Um bj e boa semana

Carlos Faria said...

há muito que passo aqui, silenciosamente, e a aprender. A blogosfera é mesmo uma universidade aberta para quem quer visitar os espaços adequados e onde nos podemos formar nas mais diversas áreas de saber e aqui sinto o desfilar das letras...

Lúcia Laborda said...

Oie lindinho! Infelizmente não conheço nem o livro, nem o filme. Mas despertou a curiosidade.
Beijos

Lúcia Laborda said...

Oie lindinho! Infelizmente não conheço nem o livro, nem o filme, mas despertou a curiosidade.
Beijos

Luís said...

Este deve ser dos melhores posts que publicaste aqui! Gostei bastante =)

Special K said...

Concordo com o Catatau quando se refere ao MEC. naqueles tempos lia com fervor as suas crónicas músicais que também ajudaram um pouco a moldar alguns dos meus gostos.
Um abraço.

Mel de Carvalho said...

Olha Luís,
como te deste conta tenho andado ausente. E eis senão quando chego ... de uma longa viagem.
E hoje precisamente li alguém que me conduziu a reler Konstantínos Kaváfis...

E porque viajar no teu Infinito Pessoal é uma viagem maior, aqui te deixo o meu agradecimento com um excerto de "Ítaca"

"(...)
Não temas monstros como os Ciclopes ou o zangado Poseidon:
Nunca os encontrarás no teu caminho
enquanto mantiveres o teu espírito elevado,
enquanto uma rara excitação agitar o teu espírito e o teu corpo.
(...)
Ítaca deu-te a tua bela viagem.
Sem ela não terias sequer partido.
Não tem mais nada a dar-te.

E, sábio como te terás tornado,
tão cheio de sabedoria e experiência,
já terás percebido, à chegada, o que significa uma Ítaca."

Que bom é sempre ler-te, Luís.
Fraterno e saudoso abraço da Mel

isabel mendes ferreira said...

tão só um dia. o mesmo dia de todos os dias para ler e reler Ulisses...


enormíssimo prazer.



beijo. Luis.

João Roque said...

Há muito te leio, Luis, umas vezes mais atento outras quiçás mais distraído sobre o(s) tema(s) versados, mas sempre com um enorme gosto pela forma muito correcta, simultâneamente didáctica e não intelectual, como transmites as tuas opiniões, os teus entusiasmos, os teus momentos aqui e ali, mais pessoais.
Este teu texto, no seu múltiplo aspecto, na versatilidade do manuseamento temático, será, talvez, aquele teu texto que melhor te caracteriza: simplesmente genial!!!!!!
Abraço de boa Amizade.

Maria P. said...

Excelente. Nada mais posso dizer...

Beijinho*

avelaneiraflorida said...

Amigo Luís,

no tempo que se cruza em todos os tempos e na pressa de outros tempos aqui chego...
Um prazer ler estas linhas infinitamente pessoais ...mas, e também, um mundo de cruzamentos do sentir...
Curioso, até hoje encontrei muito pouca gente que tenha lido O PRIMEIRO AMOR!!!!!
E quem não leu não sabe o que de tão fascinante ali se encontra!!!
Ainda bem que ele aqui está tão pessoalmente apresentado!!!

isabel mendes ferreira said...

tão só um dia uma vida não basta para tudo re.devorar o Ulisses...

raro. raríssima "bíblia" minha.










um forte abraço.

Maria Romeiras said...

Dias cheios, dias belos, palavras saborosas. Muito bom, este post. Um abraço.

Ana Paula Sena said...

Gostei da descrição dessa viagem permanente pela vida e pelo mundo das letras e das artes!

Foi óptimo recordar o Padre António Vieira (como ele sabia das coisas!) e o genial Joyce que é da minha grande predilecção. Por coincidência, ando a reler o Retrato do Artista quando Jovem.

Boas leituras e filmes, Luís! :)

pin gente said...

com tanta riqueza que dizer?

falar do amor que se segue?

abraço, luís