
Viagem através do livro "Camarim com janela para a rua" de um actor que já partiu, Varela Silva. Simone, Vítor de Sousa e Nuno Feist ilustram estas histórias com cantigas e poemas, num cenário de bastidores. Uma hora onde umas furtivas lágrimas se misturam com gargalhadas e a memória desperta.
Conversas de Camarim recorda Varela Silva, Ary dos Santos, António Gedeão, Eugénio de Andrade, Miguel Torga, Vasco de Lima Couto e alguns actores e actrizes que já fazem parte da história do teatro português. Tudo isto no Jardim de Inverno do Teatro S. Luiz por volta da meia-noite. Aconteceu, ontem, depois de ver o
Perfume, ter jantado no Chiado e ter comprado na Bertrand O Amante do Vulcão, de Susan Sontag (por influência do madrileno David, o enfant terrible da blogosfera).
Tocante este momento de camarim com um pequeno palco, duas cadeiras, um piano, três personagens, hora e meia de emoções que vale a pena. Nenhuma pretensão, uma conversa solta, ilustrada com cantigas e poemas, histórias divertidas e recordações amargas. Tudo isto com uma mulher de audácia, de génio, de raça e sempre inquieta.
Dois dos poemas lidos e cantados à luz de umas velinhas que, como escreveu o húngaro Sándor Márai, arderam (quase) até ao fim…
AMOR SEM TRÉGUAS
É necessário amar,
qualquer coisa, ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.
Não importa de quem,
nem importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não se vê.
Pode ser uma mulher,
uma pedra, uma flor,
uma cosa qualquer,
seja lá o que for.
Pode até nem ser nada
que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
que a sonhar se precise.
Amar por claridade,
sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.
Amar como o homem forte
só ele o sabe e pode-o;
amar até á morte,
amar até ao ódio.
Que o ódio, infelizmente,
quando o clima é de horror,
é forma inteligente
de se morrer de amor.
António Gedeão
ADEUS
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade
Que pena não ter um camarim!!!